Na tentativa de evitar fraudes em cotas, universidades federais do País têm criado comissões para verificar as características físicas de calouros autodeclarados pretos e pardos antes da matrícula. As instituições já tinham comitês desse tipo, mas que analisavam casos de alunos já matriculados e, geralmente, após denúncias. Pelo menos 32 das 68 federais já montaram esses grupos de averiguação preventiva, o que atende à recomendação do Ministério Público Federal (MPF).
As bancas antifraude – que não são obrigatórias – fizeram verificações nas últimas semanas nas listas de aprovados pelo sistema de reserva de vagas étnico-raciais. Os índices de matrículas indeferidos têm variado entre 10% e 39%, como no caso da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que barrou 885 estudantes. Para disputar o espaço na instituição como cotista, basta a autodeclaração do candidato, conforme prevê lei federal de 2012.
A maior partes das comissões foi criada em 2018. A expansão ocorreu após o Ministério do Planejamento criar normativa que exige o instrumento para os concursos públicos. No entanto, a regra fez com que o debate se estendesse para o ingresso de estudantes nas instituições de ensino. O Ministério da Educação (MEC) nunca criou norma específica sobre o tema, recaindo sobre as universidades a definição de como fiscalizar.
Também em 2018, o MPF oficiou todas as instituições de ensino federais e recomendou mecanismos para prevenir fraudes em cotas – a falta de instrumento do tipo pode configurar até improbidade administrativa.
Seguindo orientações do MPF, as comissões são normalmente formadas por professores e funcionários (em alguns casos também são chamados alunos e integrantes de movimentos sociais), que tenham experiência na área, para analisar as características fenotípicas do candidato, como cor da pele e olhos, tipo de cabelo e a forma do nariz e dos lábios.
No dia em que foi se matricular para estudar Veterinária, Ana (nome fictício), de 19 anos, levou os documentos exigidos pela universidade e fotos antigas, de quando era criança, dos pais, avós e até mesmo de uma bisavó. Aprovada para uma vaga reservada a pretos, pardos e indígenas, ela passou por uma comissão para ter sua autodeclaração étnico-racial checada.
Filha de pai negro e mãe branca, Ana diz que sempre se viu, e acreditava ser vista, como parda. Por isso, decidiu concorrer por cotas para ingressar na Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) “A banca não me considerou parda e negou minha matrícula. Tentei recorrer, mas também perdi o recurso.”
Até 2017, a UFRGS só verificava a autodeclaração quando havia suspeita de fraude – naquele ano 334 alunos foram denunciados e após o procedimento 239 tiveram a declaração indeferida. Como o volume foi grande, a universidade instituiu no ano seguinte uma comissão permanente de verificação, com aferição presencial e de comparecimento obrigatório para todos os aprovados por cotas. Sobre o caso de Ana, a UFRGS informou que ela teve todo o direito a recursos e ampla defesa.
A promotora Lívia Sant’Anna Vaz, da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, explica que o Conselho Nacional do MPF recomenda a fiscalização prévia desde 2015 sob o risco de improbidade administrativa.
“A responsabilidade de fiscalizar quem ingressa nas vagas reservadas é de quem promove o processo seletivo e tem a documentação em mãos – no caso, a assinatura da autodeclaração e a imagem do candidato. A universidade não pode esperar que outros alunos ou o movimento negro denuncie para só depois atuar”, diz. Isso traz prejuízos financeiros e à política de cotas. “Essa pessoa tirou a vaga de quem tinha de fato direito e desperdiçou recursos públicos por ter estudado por um período na universidade. Só punir não resolve, é preciso prevenir”.
Marlini Dorneles de Lima, coordenadora das ações afirmativas e membro da comissão verificadora da Universidade Federal de Goiás, também entende que a prevenção é menos traumática. “É um processo educativo. Nem sempre a pessoa age por má-fé e com a intenção de fraudar. Tanto é que vários candidatos com autodeclaração indeferida nem chegam a recorrer. Muitos não entendem qual o objetivo das cotas.” Procurado, o MEC não informou se pretende criar alguma norma específica sobre o tema
Recurso
Para o advogado Humberto Adami, do Instituto de Advocacia Racial e Ambiental, a comissão precisa ser sensível e cuidadosa para evitar injustiças. “É preciso levar em conta características locais. É diferente considerar um pardo na Bahia, onde a população negra é muito maior, e no Rio Grande do Sul, em que há maioria de descendentes de europeus.”
Especialista em Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP), Floriano de Azevedo Marques diz ver com “muita reserva” as comissões sob o risco de discriminar e “marcar” alunos. “Ter mecanismos sérios de punição para as fraudes já é suficiente para coibir o problema. O sujeito, sabendo que será expulso da universidade, não tentará ingressar por uma vaga que não tem direito.”
Alunos da USP cobram medidas
Uma das últimas do País a adotar o sistema de cotas étnico-raciais, a Universidade de São Paulo (USP) está sendo pressionada por estudantes e movimentos sociais para adotar ações de prevenção a fraudes na autodeclaração de pretos e pardos, como já ocorre em outras instituições de ensino do País. A USP defende só fazer a verificação se houver a formalização da denúncia na Polícia Civil.
Os alunos montaram, em caráter extraoficial, o comitê antifraude para reunir denúncias – desde o ano passado, já receberam mais de cem casos suspeitos. Eles ainda não formalizaram as denúncias por serem contrários ao procedimento da USP. “Coloca nos estudantes uma responsabilidade que não é nossa e, sim, da universidade. Ela é quem deve fiscalizar e coibir as fraudes. Não somos nós que temos de nos expor e ir atrás de possíveis fraudadores”, diz o estudante de Direito Lucas Módulo.
“A universidade não pode esperar que o problema ocorra para agir”, critica Frei David Santos, da ONG Educafro. “Ao não prevenir e garantir que quem de fato ocupa essas vagas é negro ou pardo, está sendo omissa com uma política recentemente conquistada”, afirma.
Procurada, a USP informou atuar após a denúncia de fraude ser registrada em boletim de ocorrência. “A partir daí, o denunciado será chamado a reafirmar sua autodeclaração e deverá ser aberta sindicância ou até mesmo processo administrativo. Em caso de comprovação de fraude, o aluno perderá a vaga e estará sujeito às sanções criminais”, diz a reitoria, em nota.
A reportagem apurou que a USP estuda usar nos próximos anos um software de reconhecimento facial, já usado no vestibular deste ano, para a verificação da autodeclaração – no caso da Fuvest, um dos modos de ingresso na instituição. A tecnologia analisa as características do rosto, identificando por exemplo a distância entre os olhos, o comprimento do nariz, etc.
A Unicamp, que adotou as cotas raciais há dois anos, só atua quando há denúncia, mas tem canais próprios para receber casos suspeitos, facilitando a abertura de sindicância. O coordenador da Comvest, órgão responsável pelo vestibular, José Alves de Freitas Neto, diz que a decisão em “um primeiro instante” foi de não formar comitês de avaliação, mas que a criação futura não está descartada. “A Unicamp quer que a política pública de cotas seja usufruída por quem, de fato, faz jus a ela”.
Recomendação
Após desligar 27 alunos acusados de burlar a autodeclaração racial, a Unesp decidiu fazer este ano a verificação de todos os aprovados por cotas no ato da matrícula. “É um processo trabalhoso, que exige sensibilidade e responsabilidade para não haver injustiça, mas extremamente necessário para o sucesso da política de cotas”, defende Juarez Xavier, presidente da comissão.
Como são muitas unidades, os alunos são fotografados durante a matrícula e as imagens posteriormente verificadas pela comissão. Se houver suspeita, é chamado para avaliação presencial. No caso de indeferimento, ele ainda pode entrar com recurso e pedir reavaliação. Das três estaduais, a Unesp foi a primeira a adotar cotas.
Foto: Lucas Braga/ UFMG