Foi com a renda da mãe, de 67 anos, que Daniela Soares Barreto conseguiu bancar seus dois filhos mais velhos nos últimos cinco anos. As crianças foram praticamente adotadas pela avó, com quem passaram a morar. No último dia 23 de agosto, porém, a história de dona Leovany foi interrompida. Diagnosticada com covid-19, a trabalhadora que se aposentaria dentro de um ano foi internada e, em pouco mais de 24 horas, faleceu, deixando para trás uma família chocada com o efeito devastador da doença.
“Tudo foi muito rápido. Estávamos esperançosos de que ela sairia do hospital logo”, afirmou Daniela, que rapidamente teve de arrumar forças para lidar com a falta de recursos para criar os filhos. Daniela mora numa casa menor com o marido e a filha, de 4 anos, que tem paralisia cerebral. Com a morte da mãe, os dois filhos – de 18 e 14 anos – voltaram a morar com ela, que ganha R$ 1.179 por mês. Boa parte desse valor é gasto com fraldas e remédios para a filha menor. A renda do marido, quase igual à de Daniela, paga o aluguel e as contas da casa.
A situação de Daniela é semelhante à de outras famílias brasileiras que contavam com ajuda dos idosos para fechar as contas no fim do mês. Com a covid-19, além do trauma de perder entes queridos, muitas pessoas também passaram a conviver com um grau maior de pobreza. Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a morte de idosos na pandemia pode provocar uma queda média de 20% na renda dos domicílios. Até o dia 27 de outubro, a redução somava R$ 245 milhões. De acordo com o estudo, 74% das mortes por covid são de pessoas com 60 anos ou mais – ou seja, cerca de 113 mil pessoas.
“Em alguns casos, essa perda pode chegar a 100%, já que o idoso era o único provedor da casa”, diz a pesquisadora Ana Amélia Camarano, autora do estudo Os dependentes da renda dos idosos e o coronavírus: órfãos ou novos pobres? Segundo o trabalho, 35% dos domicílios brasileiros têm pelo menos um idoso e, em 18,1%, eles eram os únicos provedores de renda da família, com um ganho médio de R$ 1.666,80. Nesse grupo estão 24 milhões de pessoas, sendo 19,5 milhões de idosos e quase 5 milhões de crianças e adultos.
E esses números vêm subindo rapidamente nos últimos anos. Levantamento feito pela consultoria iDados, a pedido do Estadão, mostra que, enquanto o número de domicílios chefiados por idosos com dependentes cresceu 34% desde 2012, o total de domicílios no País avançou 19% no mesmo período. “O Brasil está passando por um envelhecimento populacional importante. Por isso, veremos cada vez mais idosos como provedores de suas famílias”, diz o pesquisador do iDados, Bruno Ottoni.
Emprego. Além da questão populacional, esse fenômeno também está associado ao aumento do desemprego, que alcançou 14,4% em setembro. Antes disso, entre o primeiro e o segundo trimestre de 2020, quando o índice subiu de 11,6% para 13,8%, o número de residências chefiadas por idosos com dependentes aumentou em 541 mil, segundo o iDados. No mesmo período de 2019, houve uma redução do número de domicílios chefiados por idosos.
“Sem emprego, familiares passam a depender dos mais velhos, muitos deles aposentados”, diz a professora e coordenadora de economia do Insper, Juliana Inhaz. Quem mora junto com os pais retarda a saída. E aqueles que já eram independentes, ao se deparar com o desemprego, voltam ao lar parental. Quando há o enriquecimento das famílias, ocorre o contrário. Os adultos se separam dos pais, diz o economista Daniel Duque, do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV). “Hoje vivemos o inverso. Há um empobrecimento, e os filhos voltam a morar com os pais.”
Mas, na avaliação de Juliana, hoje os idosos estão mais vulneráveis. Mesmo aqueles que sobrevivem à covid passam a gastar uma parcela maior da renda com remédios e outros cuidados médicos. Nessa situação, a família é obrigada a enxugar o orçamento, sobretudo se há algum desempregado em casa. Isso significa um número maior de gente na pobreza.
Para Ana Amélia, os idosos são vítima duas vezes nessa pandemia: são mais discriminados no mercado de trabalho e são os mais atingidos pelo coronavírus. “Podemos dizer que, quando morre um idoso, uma família entra na pobreza.”