A expectativa é grande – depois de quase cinco meses suspensas em meio às restrições por conta do novo coronavírus, as gravações das novelas da Globo serão retomadas. Por ora, a data de reinício é 10 de agosto, que pode sofrer alteração, caso os efeitos da pandemia voltem a se intensificar no Rio de Janeiro, onde a emissora grava seus folhetins.
“Será um processo delicado, pois envolve não apenas atores, mas também técnicos, figurinistas, maquiadores, enfim, muitas pessoas e todas precisam estar sob segurança”, comenta Silvio de Abreu, diretor de Dramaturgia da Globo, ao jornal O Estado de S. Paulo. “Por isso, serão gravados no máximo dois capítulos por dia.”
A preocupação não é exagerada, pois, para que o trabalho seja retomado, foi estipulado um protocolo de segurança, que envolve diversos detalhes como a desinfecção diária dos estúdios, a rara presença de figurantes, o uso restrito de comida em cena e até a orientação para que os atores cuidem dos próprios figurinos e de sua maquiagem.
“(O diretor artístico) Ricardo Waddington fez um cuidadoso trabalho ao lado de médicos na preparação e no teste desse protocolo”, explica Abreu, lembrando que ensaios poderão recomeçar na segunda-feira, 27.
A retomada acontecerá apenas para Amor de Mãe, novela que vinha sendo exibida na faixa das 21 horas e cuja gravação foi interrompida em março – Salve-se Quem Puder, que ocupa o horário das 19 horas e também foi suspensa, só voltará a ser gravada quando a outra estiver finalizada.
“Não é possível agora gravar as duas simultaneamente. Espero que, em janeiro, possamos retomar o ritmo normal das produções”, explica Abreu.
E, ao contrário do processo habitual de uma novela, cujos capítulos são gravados enquanto a história já está no ar, dessa vez Amor de Mãe só volta ao ar quando todos seus 23 capítulos estiverem gravados.
“Não podemos correr o risco de, no meio da história, algum ator precisar se afastar”, explica Abreu, lembrando que a autora, Manuela Dias, incluiu a pandemia na continuação da trama, o que vai justificar desde o uso de máscaras pelos personagens como a atitude de se manter um isolamento social. Ou seja, mostrar que também eles abraçam explicitamente as novas regras da vida em uma pandemia.
O desafio, no entanto, é manter os conflitos, a intimidade e o drama que os fãs aprenderam a gostar sem que as gravações sejam comprometidas – afinal, não será possível registrar cenas de beijos, lutas físicas ou que envolvam aglomerações. “E Amor de Mãe é marcada por muito afeto – a personagem de Regina Casé vive cercada pelos filhos, não podemos perder esse carinho”, observa Abreu, justificando, por isso, a condensação da história e a diminuição de capítulos. “Com isso, teremos a certeza de que a trama não será interrompida ou modificada.”
Com 66 anos, Regina Casé se encontra no grupo de risco, o que tornará especial sua rotina de trabalho – assim como os atores mais velhos, ela deverá gravar em um ritmo menos acentuado que os demais e, quando possível, fará suas cenas isoladamente. Também as crianças deverão ser poucas ou nenhuma em cena: na história, seus personagens serão encaminhados para outros lugares. E todos que fazem parte do elenco e da equipe terão sua temperatura verificada quando entrarem no estúdio.
Já com Salve-se Quem Puder, a situação é mais complicada por se tratar de uma novela de ação, ou seja, marcada por brigas, correrias, muita ação. “Não podemos manter os personagens distantes”, explica Abreu, lembrando ainda que, neste caso, a covid não entrará na trama. Assim, sua rotina de gravações só deverá ser retomada no fim do ano ou mesmo em 2021.
Estratégias no estúdios ajudarão a criar ilusões necessárias, com as câmeras posicionadas para fazer com que o elenco pareça estar em pé ou sentado mais próximo um do outro. Também o avanço tecnológico será um grande aliado ao oferecer efeitos especiais, que poderão compensar limitações mais graves. “Poderemos ter, por exemplo, uma cena gravada no estúdio e, na pós-produção, incluir uma praia ao fundo”, conta Silvio de Abreu. “O público não pode sentir um choque.”
E é pensando justamente na audiência que a produção das novelas já prepara um resumo das tramas que será apresentado antes da retomada, para refrescar a lembrança dos espectadores sobre o momento em que houve a paralisação na história. É que, desde então, reprises de folhetins antigos entraram no ar como solução para a falta de capítulos novos.
Uma solução que, além de reparadora, trouxe bons resultados – com as pessoas permanecendo mais tempo em casa, a Globo vem conquistando uma boa audiência: do Vale a Pena Ver de Novo, exibido no meio da tarde, até a faixa mais nobre, a das 21 horas, as cinco tramas da emissora estão indo razoavelmente bem, com índices entre 20 e 30 pontos.
Totalmente Demais, que ocupa o horário de Salve-se Quem Puder, aponta uma audiência ainda maior do que na exibição original, em 2015/16, chegando perto dos 30 pontos. E Fina Estampa, que substitui Amor de Mãe, varia entre 32 e 34 pontos.
Essas reprises, porém, não têm fôlego para ficar no ar até o final do ano e logo serão substituídas por outras. Assim, A Força do Querer, novela de Gloria Perez exibida em 2017, voltará também em versão condensada para continuar o trabalho de Fina Estampa e garantir mais tempo para a gravação de Amor de Mãe. “Como é uma experiência nova e precisamos fazer a retomada com calma, é bom termos tempo.”
Aos 77 anos, Silvio de Abreu tem vasta experiência em teledramaturgia. Cenógrafo de formação, teve uma rápida passagem como ator (trabalhou nas tevês Tupi, Excelsior e Bandeirantes) até se aventurar na escrita. Estreou em 1977, dividindo a autoria da versão do romance Éramos Seis para a Tupi com o crítico Rubens Ewald Filho.
“Desde aquela época, acreditava-se que a novela era um gênero que não duraria muito, mas hoje o canal Viva é o que tem a maior audiência na TV paga, a Globoplay nota a grande receptividade a cada novela antiga que entra no pacote e a reprise de Totalmente Demais tem atraídos os jovens, que enviam mensagens para a emissora com comentários”, diz ele, cuja carreira é marcada por grandes sucessos de público e crítica como Guerra dos Sexos, Rainha da Sucata, A Próxima Vítima e Passione, entre outras.
“Toda novela começa como uma peça literária, pois está apenas na cabeça do autor e na sua escrita”, ensina Abreu. “Ao se tornar ação, ou seja, com os atores assumindo os personagens, a direção conduzindo a história, a chegada da iluminação, da trilha sonora, tudo se modifica, não é mais literatura. Mas o controle continua com o autor – não acredito na explicação (que já se tornou lenda) de que as preferências do público podem alterar a narrativa de uma novela. Afinal, o que o público está vendo hoje foi pensado pelo autor pelo menos um mês antes.”
Diretor de Dramaturgia da Globo desde 2014, Abreu acredita que o público prefere as narrativas do cotidiano às tramas originais demais. “A reação do telespectador é mais emocional que racional com uma novela que, ao contrário de um filme ou romance, se trata de uma obra aberta, construída diariamente ao mesmo tempo em que está no ar.”
Em sua função, Abreu já tem uma escala de novelas até 2024, com revezamento entre autores veteranos (como Gilberto Braga) e novatos (caso de Lícia Manzo). Ou seja, não pensa em se aposentar tão cedo, como alardearam sites especializados na semana passada.