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Justiça condena Santa Casa de Limeira por negar cirurgia a testemunha de Jeová

Foto: Roxane Regly - Rápido no Ar

A Justiça de Limeira (SP) julgou um caso que envolve saúde e religião. Um homem que declarou ser testemunha de Jeová processou a Santa Casa e a Prefeitura por danos morais porque, após se envolver num acidente de trânsito, o hospital não aceitou submetê-lo a cirurgia sem a possibilidade de transfusão sanguínea. A sentença é do mês passado.

Na ação, o advogado do paciente descreveu que ele foi encaminhado à Santa Casa no dia 21 de janeiro do ano passado, após sofrer acidente de moto que resultou em fraturas no úmero proximal esquerdo e direito, fíbula proximal esquerda, maléolo posterior esquerdo e clavícula esquerda. No hospital, se identificou como testemunha de Jeová e informou o tipo de tratamento médico que entendia ser o melhor, de acordo com suas convicções morais e religiosas, pois comunicou que não receberia transfusão de sangue.

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Ainda na ação, o paciente mencionou que passou a ser constrangido porque a equipe médica não aceitou fazer a cirurgia em relação aos membros fraturados sem transfusão de sangue. Na ocasião, apontouque desejava tratamento médico sem uso de sangue total, ou dos seus componentes primários, e disse ter esclarecido ao corpo clínico que aceitava apenas pequenas frações secundárias de sangue ou sintéticas, aptas a preservar e aumentar o volume de glóbulos vermelhos, além da possibilidade de utilização do seu próprio sangue por intermédio da utilização de máquina de recuperação intraoperatória e técnica de hemodiluição normovolêmica aguda. Também afirmou que foi colocado à inteira disposição do hospital e da equipe médica responsável, gratuitamente, a máquina de recuperação intraoperatória, além da possibilidade de realização de técnica simples de hemodiluição normovolêmica aguda, que consiste na utilização de apenas uma ou duas bolsas de coleta de sangue do paciente que, a ele fica conectada para ser devolvido no final da cirurgia para preservar o volume de sangue do seu corpo, o que tornaria desnecessário recorrer à hemotransfusão. O paciente também conseguiu um médico que se disponibilizou transmitir conhecimentos, experiência e técnica para realizar os procedimentos cirúrgicos necessários sem uso de sangue, contudo, todas as alternativas foram recusadas.

Além da recusa, o advogado do paciente comunicou à Justiça que o cliente foi pressionado a assinar um termo de ciência e esclarecimento elaborado unilateralmente, destinado a pacientes que se identificam como testemunhas de Jeová, documento que, segundo ele, demonstra ser uma “carta em branco” já que autoriza expressamente o corpo clínico do hospital a realizar qualquer procedimento, sem considerar a declaração de vontade do paciente.

Quando entrou com a ação, o paciente pediu concessão de antecipação da tutela para que a Santa Casa e a Prefeitura de Limeira providenciassem, no prazo de 48 horas, a imediata realização de cirurgia sem uso de hemotransfusão alogênica, ou, no mesmo prazo, providenciassem a transferência do autor em hospital da rede pública que possuísse condições de realizar o procedimento cirúrgico sem hemotransfusão. Na ocasião, a liminar foi concedida e o paciente foi submetido a cirurgia na Santa Casa de Rio Claro.

Além disso, ele requereu que as duas assumissem as despesas com a remoção e transferência, bem como sequestro de valores para realização do procedimento cirúrgico em hospital particular, acrescido dos honorários da equipe médica particular, medicamentos e equipamentos.

O valor do dano moral estipulado pelo paciente foi de R$ 20 mil e ele também pediu na Justiça declaração de violação de seus direitos e garantias fundamentais, declaração de nulidade do contrato de internação e termo de consentimento esclarecido.

SANTA CASA
Em sua defesa, a Santa Casa de Limeira sustentou que em nenhum momento houve negativa ou descaso de sua parte em viabilizar a realização do tratamento e da cirurgia ortopédica em favor do paciente. Mencionou ainda que toda a estrutura e pessoal que possui estão preparados para operar os acidentados, porém fazendo uso de sangue, se necessário. Quanto à alegação de eventual discriminação, o hospital pontuou que não ocorreu e que o impedimento em realizar a cirurgia se deu por questões de ordem técnica.

Ainda em sua defesa, a Santa Casa citou que o atual convênio firmado com o SUS não prevê a obrigação de ofertar cirurgias sem hemotransfusão, tampouco de fazer uso da máquina de recuperação intraoperatória, motivo pelo qual afirmou que mesmo se tal procedimento pudesse ser realizado, não seria reembolsado pelo SUS, o que lhe geraria abalo financeiro. Referente à busca de outros hospitais da rede pública e o direcionamento de pacientes do sistema público, em qualquer caso, se dá pela Central de Regulação de Urgência da Coordenadoria de Regiões de Saúde.

A instituição informou nos autos que, em razão de tal sistema de direcionamento, e por reconhecer suas limitações técnicas e estruturais para realização de cirurgias sem uso de sangue, desde a admissão do paciente lançou o nome dele na Central de Regulação de Urgência, e defendeu, por conta disso, não ter havido tratamento discriminatório, tampouco desrespeito à autonomia ou direitos fundamentais. Citou também que o documento assinado pelo paciente o tornou ciente dos riscos inerentes a cada fase do tratamento, bem como ser possível a ele decidir se aceitava ou não as condutas ofertadas pelo hospital.

PREFEITURA DE LIMEIRA
Nos autos, a Prefeitura justificou que não possui qualquer relação com a situação e defendeu a necessidade de estabelecimento de critérios para a prestação jurisdicional nas ações que versam sobre o direito à saúde. “O acesso deve ser universal mas também igualitário, e também que o interesse público deve se sobrepor ao interesse privado”, citou na defesa.

O Executivo também questionou a legitimidade do Poder Judiciário para definir políticas públicas de saúde, sustentando que a intervenção deve ocorrer somente em situações extremas, rechaçou a existência de dano moral indenizável no caso e requereu a total improcedência da ação.

A DECISÃO
Na decisão, a juíza Sabrina Martinho Soares, da Vara da Fazenda Pública, citou a Constituição Federal e também a Constituição do Estado de São Paulo, especialmente os artigos que citam que “a saúde é direito de todos e dever do Estado” e “compete ao sistema único de saúde, nos termos da lei, além de outras atribuições: I – a assistência integral à saúde, respeitadas as necessidades específicas de todos os seguimentos da população[…]”, respectivamente.

Ainda na sentença, a juíza voltou a mencionar a Constituição, que garante o direito à igualdade e à liberdade de consciência e crença. “Sobre igualdade, sem a intenção de ser redundante, entende-se que os cidadãos devem ser tratados de forma isonômica, não podendo a crença, cor, raça ou classe social de um determinado indivíduo constituir óbice a direito constitucionalmente previsto”, mencionou e continuou “[…] portanto, mostra-se evidente que se um cidadão possui direito a ter procedimento cirúrgico custeado pelo SUS, ainda que não padronizado, o mesmo tratamento deve ser dado àquele que, em razão de sua convicção religiosa, se opõe à tratamento padrão, sobretudo quando há tratamento alternativo viável, como no presente caso”, pontuou.

A magistrada mencionou na decisão que, após deferimento de liminar, o paciente fez a cirurgia na Santa Casa de Rio Claro e não precisou de transfusão sanguínea. “[…] o que demonstrou ser perfeitamente possível a realização do procedimento sem o uso de sangue”, completou.

Quanto ao pedido de indenização por dano moral, a juíza levou em consideração o período entre a internação e a cirurgia, bem como a assinatura de um termo. “Notória a falha na prestação de serviço, pois todos os entraves e obstáculos opostos em razão da religião do autor fizeram com que o intervalo entre o acidente, 21 de janeiro, e a realização da necessária cirurgia, 6 de fevereiro, que estava internado em razão de diversas fraturas descritas na inicial, excedesse o que se pode entender por razoável ou justificável, tendo-se aqui um dos motivos para reconhecimento do dano moral pleiteado. E por fim, há que se reconhecer que a falha na prestação do serviço se deu também por parte do nosocômio réu, uma vez que o Termo de Ciência e Esclarecimento para Testemunha de Jeová apresentado ao autor, ao contrário do que sustenta a Santa Casa, viola a consciência e crença do paciente, pois condiciona a realização do procedimento cirúrgico necessário à assinatura do documento”.

Outra situação que chamou a atenção da juíza foi falta da cópia do documento “Diretivas Antecipadas e Procuração para Tratamento de Saúde” no prontuário médico, apresentado pelo autor, “o que demonstra a posição institucional do hospital na recusa na realização da cirurgia sem o uso do sangue, desprezando-se documento jurídico válido e legal de modo arbitrário e autoritário”, citou a magistrada.

A juíza condenou a Santa Casa e a Prefeitura de Limeira, solidaiamente, a pagar indenização de R$ 20 mil ao paciente por danos morais. Também declarou que ele teve seus direitos e garantias fundamentais violados e tornou nulo o termo de ciência e esclarecimento para testemunhas de Jeová. A Prefeitura deverá ainda arcar com todas as despesas da cirurgia feita em Rio Claro.

A Justiça também notificou o Ministério Público para, sendo o caso, apure eventual prática irregular por parte da Santa Casa Limeira em relação ao termo de ciência e esclarecimento utilizado pela instituição bem como se há recusa do hospital em anexar ao prontuário médico de pacientes testemunhas de Jeová o documento “Diretivas Antecipadas e Procuração para Tratamento de Saúde”.

A Santa Casa e a Prefeitura foram procuradas pelo Rápido no Ar, mas não se manifestaram.

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