Ícone do site Rápido no Ar

Vegetariano, Leonardo da Vinci teve de conviver com carniceiros para construir sua obra

Para quem teve patronos tão politicamente incorretos como Ludovico Sforza, que envenenou o sobrinho para usurpar a coroa ducal de Milão, ou César Bórgia, que esfaqueou o próprio irmão e virou o modelo de Maquiavel em O Príncipe, Leonardo da Vinci, lembrado pelos 500 anos de morte no dia 2 de maio, era até bem-comportado. Um pouco escandaloso, é certo, mas também isso os poderosos desculpavam por ter como protegido um gênio das artes, da ciência e até da engenharia militar. Graças a uma encomenda de Sforza, Da Vinci pintou A Última Ceia (1495-1498) no refeitório do convento de Santa Maria delle Grazie em Milão. Bórgia não só reconheceu no pintor um inventor e engenheiro militar de gênio como conseguiu para ele um passaporte e salvo-conduto que concediam ao portador direito irrestrito de inspecionar o que quer que fosse em seus domínios, de fortes a castelos.

Resumidamente, Da Vinci foi não só o autor da pintura mais famosa do mundo, o retrato de Mona Lisa (1503), a suprema atração do Louvre, como um dos homens mais influentes de toda a Itália, graças às obras-primas que pintou, além de suas invenções, que foram bastante úteis a César Bórgia – muitas de suas vitórias e conquistas foram frutos da habilidade de Da Vinci como engenheiro, como o hodômetro, usado para medir longas distâncias, ou os originais mapas desenhados por ele, como o de Ímola, onde esteve com César Bórgia e Maquiavel.

PUBLICIDADE

Para compensar essas bélicas companhias, o vegetariano Da Vinci, que definia as guerras como “loucuras imensamente desagradáveis”, encontrava a paz nos braços de um garoto bem mais novo que ele, Salai (de ‘salaino’, diabinho), um malandrinho retratado várias vezes pelo pintor, com e sem roupa. O andrógino Salai, com seus cabelos ondulados e olhar malicioso, viria a ser o modelo do São João Batista (1508-1516) de Da Vinci – ele pode ser visto ao natural, de frente e de costas, em desenhos reproduzidos na biografia que o norte-americano Walter Isaacson produziu há dois anos, publicada no Brasil pela editora Intrínseca.

Isaacson não foi o primeiro a analisar a relação mais duradoura (30 anos) de Da Vinci (até o biógrafo Vasari menciona o assistente do pintor e, depois dele, Kenneth Clark). Sua vida privada, afinal, nunca foi segredo: o pintor foi acusado (e depois absolvido) de sodomia pelas autoridades florentinas (em 1476) quando ainda trabalhava na oficina de Verrocchio. Visitou a delegacia local em mais de uma ocasião (há registros de ocorrências em Florença). O motivo era invariavelmente o mesmo: as festas que promovia em sua casa, onde não faltavam diabinhos como Salai, ou Gian Giacomo Caprotti, filho de um camponês que, aos 10 anos, em 1490, foi morar com o pintor – Da Vinci tinha 38

Uma das habilidades de Salai, batedor de carteiras nato, era roubar pertences de amigos de Leonardo que visitavam sua casa. Isso deixava o pintor furioso, impotente diante das travessuras e dos maus modos do amiguinho, glutão, mentiroso, teimoso e desajeitado que, além de tudo, quebrava galhetas e derramava vinho nos jantares mais finos. Outra de suas habilidades era interferir de forma jocosa na obra do amante – é quase certo que seja o autor da ereção de O Anjo Encarnado, versão pornográfica do Anjo da Anunciação que imita o gesto do São João Batista de seu mestre. Lá pode ter o dedo de Salai (que acabou herdando a Mona Lisa com a morte de Da Vinci) ou de algum outro auxiliar que se apropriou do caderninho do pintor, como suspeita o biógrafo Walter Isaacson.
Your browser does not support the video tag.https://cdn.rapidonoar.com.br/videos/2019/04/culturainglesa.mp4
Seja como for, Da Vinci não teria pudor em dessacralizar um anjo Quando jovem, em Florença, desenhou o corpo humano seguindo os conselhos do livro Da Pintura, do artista e engenheiro Leon Battista Alberti, que recomendava despir um homem antes de vesti-lo, para saber onde fica cada músculo e nervo nesse corpo. Da Vinci foi além: dissecou corpos para conhecer o seu funcionamento, eliminando a fronteira entre arte e ciência. O Homem Vitruviano (c. 1490), que pode ser um autorretrato de Da Vinci aos 38 anos, é apenas um exemplo da precisão científica do pintor, assim chamado por colocar em dúvida alguns mandamentos anatômicos de Vitrúvio (Vitruvius Pollio), como o da altura de um homem, que seria seis vezes o comprimento do seu pé segundo o arquiteto romano – Da Vinci discordou e concluiu que são sete vezes.

Inserida num círculo e num quadrado, duas formas geométricas irreconciliáveis, a figura do homem vitruviano é o símbolo máximo do Renascimento italiano, um ícone visto pelos estudiosos da obra de Da Vinci como uma combinação perfeita entre matemática, filosofia e arte. Para o exigente mestre nascido em Vinci, pequeno povoado perto de Florença, a perfeição não era monstruosa, mas uma meta a seguir como filho ilegítimo de um notário separado da mãe aos 5 anos. Tanto que só chegaram até nós pouco mais de 20 pinturas atribuídas a ele. O próprio Da Vinci definiria as três principais, ao levar com ele para a França, em 1516, a Mona Lisa, o óleo sobre madeira A Virgem e o Menino com Santa Ana (c. 1503) e São João Batista. Lá, a convite do rei Francisco I, o pintor viveu os últimos anos de sua vida. Não imaginaria que uma das pinturas atribuídas a ele por especialistas, Salvator Mundi, que retrata Jesus Cristo, seria a obra de arte mais cara do mundo (ela alcançou US$ 450 milhões num leilão da Christie’s, em 2017). Se vivesse hoje, certamente Da Vinci não precisaria andar em companhia de carniceiros como Ludovico Sforza e César Bórgia.

Sair da versão mobile