Defensor do projeto aprovado nesta quarta-feira (26), pelo Senado que pune autoridades que cometerem abuso, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes avalia que esse é apenas o ponto de partida para uma reforma na legislação e a correção de rumos contra exageros cometidos por juízes, promotores e policiais.
Entre as questões que precisam ser revisitadas, na opinião do ministro, estão a lei das delações premiadas e as ações sobre prisão após segunda instância. “A experiência indica que a gente não pode fugir dos temas problemáticos”, afirma.
Em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, o ministro rebate a força-tarefa da Operação Lava Jato que enxerga na lei de abuso uma forma de amedrontar juízes e investigadores. Gilmar Mendes diz acreditar que o projeto pode evitar o surgimento de “falsos heróis”, que cometem excesso “em nome supostamente” de um combate à criminalidade. “O cemitério está cheio desses falsos heróis. Eles são apresentados por vocês (mídia) como tal e acreditam nisso. Depois, coitados, passam a ter um grande problema de depressão, obviamente antes de desaparecerem por completo”, diz.
O ministro recebeu o Estado em seu gabinete um dia após defender liberdade provisória para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva até o julgamento do pedido de suspeição do ex-juiz federal e atual ministro da Justiça, Sérgio Moro.
Os defensores da prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva dizem que o sr. tentou dar um golpe ao propor liberdade provisória até a conclusão do julgamento da suspeição do juiz Sérgio Moro. O que ocorreu?
Como está todo mundo operando sobre conjecturas, cria uma lenda urbana. É algo técnico – temos um réu preso, há mais de 400 dias, que está pedindo um habeas corpus. Na minha perspectiva, entendi que havia plausibilidade jurídica. É algo muito singelo
O sr. disse que não devolveria o processo contra Moro para julgamento porque ele era o 12º item da pauta. A presidente da 2ª Turma, ministra Cármen Lúcia, por outro lado, disse que habeas corpus tem prioridade.
É claro que quando se coloca um processo em primeiro lugar na pauta, já é uma escolha. Mas essa discussão está superada.
O julgamento da suspeição de Moro abre brecha pra acabar com a Lava Jato?
Acho que não. O que ameaça qualquer operação policial é o serviço mal feito. Qualquer operação que é mal inspirada ou sem base jurídica acaba sendo uma ameaça. Por isso que se recomenda modéstia, cautela, cuidado.
Quando o sr. acha que já dá para concluir o julgamento?
O pedido de vista é importante para que tenhamos uma clareza em relação a tudo que ocorreu. Uma parte nós já sabemos, outra não. É importante que se saiba para fins jurídicos e históricos. Não houve aqui nenhum cálculo de retardar. Considero que hoje a matéria existente já é suficiente para fazer uma análise do tema, independentemente do que consta aí nessas publicações do Intercept (The Intercept Brasil). Meu voto já está pronto.
Qual a avaliação que o sr. faz do ministro Sérgio Moro? Seria recomendável se afastar?
Não vou emitir juízo sobre isso, não é da minha alçada. Acho que essa é uma questão política que terá de ser discutida no âmbito político.
Moro é tratado como herói por parte dos brasileiros, assim como procuradores da força-tarefa da Lava Jato. Isso abre margem para excessos?
Se eu fosse listar todos esses episódios, teríamos vários desses personagens que já não são mais lembrados, como o procurador Luiz Francisco, o delegado Protógenes (Queiroz), que a mídia em algum momento transformou em herói e, quando se revela a sua inconsistência, a mídia lhes dá um enterro silencioso. Se a mídia já tivesse feito um exame, talvez a gente não tivesse de conviver com esses falsos heróis da atualidade. Em geral, não têm vida longa. O cemitério está cheio desses falsos heróis.
Sérgio Moro está na sua lista de falsos heróis?
Eu não coloquei. O que eu acho é que faz parte do nosso processo civilizatório, nós temos de encerrar esse ciclo de ficar na busca de heróis. Eles são apresentados por vocês (mídia) como tal e eles passam a acreditar nisso. Depois, coitados, passam a ter um grande problema de depressão, obviamente antes de desaparecerem por completo.
O sr. se tornou um dos principais críticos aos métodos de investigação da Lava Jato. Diante dos novos fatos, esse é o famoso caso do “Eu avisei”?
Acho que se estimulou muito esse jogo de espertezas institucionais, nessa busca de atalhos em nome supostamente de um combate à criminalidade, da correção de rumos. A própria ideia de força-tarefa já é uma ideia distorcida – por que não operar com as próprias pessoas que lá estão? Acho que vamos ter uma grande evolução e um grande aprendizado a partir desses episódios. Todos nós vamos ficar mais preparados e a própria legislação que virá em decorrência desses fatos todos será muito mais realista e talvez mais precisa, evitando essa discricionaridade abusiva.
O que deve mudar?
Veja o que aconteceu, por exemplo, com a lei da delação premiada – ela é muito genérica, mas os acordos permitem que as pessoas concebam as fórmulas, os benefícios os mais extravagantes. Em suma, acho que vamos sair muito mais fortes dessa crise.
O criminalista André Luís Callegari disse ao “Estado” que a lei precisa ser revista. Concorda?
Eu acho que é inevitável, acho que virá uma reforma com responsabilidade nesse tipo de matéria. Temos um encontro marcado com as prisões alongadas de Curitiba, com vários desses modelos. Até hoje temos muitas discussões em torno dos acordos e tal, direito das pessoas de eventualmente se defenderem, tudo isso agora precisará ser devidamente disciplinado e regulado.
O Supremo vai mudar o entendimento da prisão após segunda instância?
O que se viu foi a generalização dessa prática e começamos, então, a fazer um debate. Acho oportuno que façamos esse debate e estou certo que no segundo semestre vamos revisitar o tema. A experiência indica que a gente não pode fugir dos temas problemáticos, pelo contrário. Temos de enfrentá-los. Esse tema vai entrar, sim, na pauta. É importante que seja visto num debate de garantias fundamentais, independentemente do benefício que possa trazer a A ou B.
O Senado Federal aprovou ontem o projeto de abuso de autoridade. O sr. é a favor, mas a Lava Jato é contra.
A lei hoje existente é de 1965, está toda ultrapassada. Ninguém cogitava fazer lei contra operações policiais ou grupos, ou coisa do tipo. Ali aparecem todos os exageros de juízes, promotores, policiais, auditores fiscais, de membros de CPI, veja que a toda hora estamos dando, eu mesmo dei várias liminares contra condução coercitiva, de depoentes em CPI, ou mesmo para assegurar o direito ao silêncio. Então, a mim me parece que isso é inclusive um instrumento de reequilíbrio dessa relação que é de hipossuficiência do cidadão frente às autoridades.
Não vai intimidar juízes e investigadores?
O próprio nome ‘juiz de direito’ supõe que seja ‘juiz de direito’, não ‘juiz do errado’. O juiz falar: ‘Preciso ter mais liberdade, fazer algo mais enfático, quem sabe dar um tapa no réu?’ Quer dizer, não, isso não pode. Então, cumprir a lei no seu rigor. Quem é rigoroso para com os outros tem de ser para consigo mesmo.