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Tapa reafirma suas qualidades em ‘O Jardim das Cerejeiras’

Mesmo diante da falência iminente, a protagonista de O Jardim das Cerejeiras não pensa em abrir mão de suas convicções. Para salvar sua propriedade, prestes a ser leiloada, Liuba poderia construir chalés para turistas e alugá-los no verão – eis a sugestão que recebe de um homem de negócios. Mas a ideia lhe parece de tal maneira despropositada e vulgar que ela sequer a leva em consideração. Prefere perder a centenária casa da família a ceder em sua visão de mundo.

A trajetória do grupo Tapa, que celebra 40 anos de existência, não deixa de guardar suas semelhanças com o enredo dessa peça de Anton Tchekhov. Tal qual a personagem do drama russo, a companhia teatral mantém-se fiel a seus princípios mesmo quando todo o entorno lhe convida a se adaptar aos novos tempos. Acostumado à velocidade das mídias digitais, o público hoje quer textos mais curtos. Até os clássicos devem ser adaptados para agradar ao paladar contemporâneo. Nesse contexto adverso, o Tapa insiste em ser voz dissidente. Nadando contra a corrente, o grupo não deixa morrer os grandes momentos da literatura dramática dos séculos 19 e 20. E opta por trazê-los em versões fidedignas – como se tivesse um compromisso pedagógico de formar as novas plateias.

Última e mais celebrada das peças de Tchekhov, O Jardim das Cerejeiras estreou em 1904 envolta em uma polêmica. Para o autor, tratava-se uma comédia. Já para o diretor da primeira encenação, Konstantin Stanislaviski, era evidentemente um drama de coloração trágica. De certa forma, a visão de Stanislavski foi a que prevaleceu ao longo dos anos. Mas a direção de Eduardo Tolentino de Araújo dosa bem a mão e consegue equilibrar as duas visões.

No papel principal, Clara Carvalho constrói uma interpretação que é a viga mestra dessa sobreposição entre o ridículo e a melancolia. Sua atuação como Liuba faz um delicado ziguezague: surge ora desnorteada, ora segura de suas convicções. Heroína e anti-heroína ao mesmo tempo, lamenta as perdas que sofreu sem perder de vista certa lucidez. Ela já viu morrer seu filho mais novo, foi rejeitada pelo amante e agora assiste à demolição de sua antiga casa. Tem atitudes excêntricas – como a decisão de promover um baile em meio ao colapso que a assombra – mas também aponta o lado patético daqueles que acreditam demais nas próprias verdades, como é o caso do estudante idealista, Pétia (Alan Foster).

À presença dessa alquebrada senhora aristocrática, Tchekhov soma o humor, a cargo principalmente dos personagens secundários. Também atingido pela perda das terras, o irmão de Liuba, Gaév (Brian Penido Ross), só quer saber de jogos de bilhar e descreve suas ideias com movimentos de sinuca. O administrador da propriedade Epikhodov (Paulo Marcos) vive tropeçando e caindo, o criado Firs (Guilherme Sant’Anna) é surdo e a governanta Carlota (Mariana Muniz) saca truques de mágica nos contextos mais despropositados.

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Existe a tristeza por um mundo que fenecia naquele momento histórico – lembramos que a Rússia estava às portas da Revolução de 1917. Mas há, sobretudo, um choque por não se saber em que direção se caminhava. O interessante é que as semelhanças com a conjuntura atual – igualmente um momento de crise de valores e de construção de novas bases sociais – ficam evidentes sem que a direção precise sublinhar os pontos de contato. Fica a encargo de quem vê ligar esses pontos ou não. E essa confiança na inteligência do espectador faz toda diferença.

Algumas questões técnicas limitam o espetáculo: Iluminação e cenografia são um tanto óbvias e acrescentam pouco ao resultado. O som também não ajuda – aparentemente em função dos equipamentos do teatro. São aspectos a ser ajustados, sem que se comprometa o essencial: uma harmoniosa interpretação do vasto elenco. Além da já mencionada atuação de Clara Carvalho, outros dois atores sobressaem: Sergio Mastropasqua como o negociante, representante dos novos tempos, e Anna Cecília Junqueira como Vária, a filha adotiva da protagonista. Sua personagem, negligenciada em muitas das montagens de O Jardim das Cerejeiras, ganha aqui uma inteireza e uma dignidade raras.

O JARDIM DAS CEREJEIRAS
Teatro Aliança Francesa.
Rua General Jardim, 182. Tel. 3572-2379. 5ª a sáb., 20h30. Dom. 19h. R$ 20 / R$ 60. Até 21/4
As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.

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