Adolescente no gueto negro de Watts, em Los Angeles, Charlie Mingus (1922-1979) queria aprender a tocar violoncelo, mas levou um cascudo de seu professor, que o obrigou, aos 16 anos, a trocá-lo pelo contrabaixo, este sim “instrumento de negro”. E o que dizer do piano, instrumento “clássico” por excelência? A discriminação era ainda mais forte. Nina Simone (1933-2003) queria ser concertista, mas foi devidamente bloqueada. O caso mais recente a se transformar em foco das atenções da mídia por causa do filme Green Book: O Guia, concorrente ao Oscar deste ano, é o do pianista negro Don Shirley (1927-2013).
Nascido em Pensacola, na Flórida, de pais jamaicanos, ele queria ser pianista clássico. Aos 18 anos, solou o famoso Concerto no. 1 de Tchaikovski com a Boston Pops. Mas o empresário Sul Hurok – o mesmo que incentivou a contralto negra Marian Anderson a quebrar preconceitos e vencer na carreira de cantora lírica – só faltou dar um cascudo em Shirley para fazê-lo desistir.
Apenas porque resgatou do limbo este notável pianista negro que mesmo assim insistiu em fazer música ao mesmo tempo norte-americana e clássica, como afirmou em entrevistas antigas, Green Book já tem um forte significado simbólico. Até porque o destino de Shirley foi menos glorioso do que o de Mingus ou Nina Simone. Don ficou ensanduichado entre os dois gêneros numa época em que eles eram rigidamente compartimentados. O Carnegie Hall, aberto graças à elite nova-iorquina na década de 1890, só recebeu sua primeira apresentação de música popular em 16 de janeiro de 1938 (o célebre “concerto” da big band de Benny Goodman, então coroado o “rei do swing”).
Determinado, Shirley impôs sua estética híbrida e gravou bastante entre os anos 1950 e 80. Seu trio já era bizarro para os padrões mesmo de hoje: piano, violoncelo e contrabaixo. Ouça no YouTube duas performances arrebatadoras: de Georgia on my mind e, sobretudo, I Can’t get started. Nesta última, ele constrói uma fuga com absoluta densidade, opera o milagre de fundir formas clássicas com um swing refinado. Tudo de extremo bom gosto – mas nunca banal, sempre essencial.
Hoje com 29 anos e vencedor do Concurso Thelonious Monk aos 21, em 2011, Kris Bowers fez um admirável tributo a Don Shirley na espantosa trilha sonora de Green Book: ele mesmo interpreta os arranjos transcritos das performances do pianista. Tudo muito bem emoldurado pelos sons diversificados da década de 1950, como “hits” de grupos vocais hoje esquecidos como Blue Jays e The Blackwells.
E muito mais. Bowers só escorrega quando compõe trechos minimalistas, cacoete hoje quase insuportável de tão repetido nas trilhas de hoje em dia.
Por isso, os momentos musicais mais memoráveis são as recriações de Don Shirley: Blue Skies, dois minutos, e Water Boy, cinco minutos – ambos pura magia e fusão erudito-popular. Se, como eu, você quiser ouvir mais música dele, fique com os CDs In Concert e Um improviso sobre a história de Orfeu no Inferno (antológico), disponíveis nas plataformas digitais.