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Em tempos de isolamento, se conectar é preciso

Seres humanos são complexos mesmo, somos seres constantemente ‘insatisfeitos’ e ‘incompletos’ e, com alguma frequência queremos o que não é possível, no momento. Como assim?

Há alguns anos, com uma frequência bastante grande somos incentivados a nos relacionarmos mais com outras pessoas, a sairmos mais, a buscarmos mais o contato com outro ser humano, a estabelecer vínculos e conexões, a deixarmos de lado, por um tempo, o celular, computador, redes sociais, televisão, plataformas de filmes online e vivermos ‘o mundo real’ o ‘mundo de verdade’ que se nos apresenta lindo, cheio de vida, recheado de pessoas, sorrisos, conversas, amigos, informações, troca de afeto e de carinho. Entretanto, raramente vemos pessoas deixando seus celulares, suas redes sociais, sua TV, o conforto de seu quarto para rir e conversar com amigos de forma natural e despretensiosa.

Ocorre que, hoje vivemos a pandemia do coronavírus, o Covid-19, e isso bastou para que entrássemos em pânico total, pânico de tudo, a necessidade daquilo que nunca antes nem lembramos que existia tomou conta de nós com uma intensidade avassaladora e passamos a necessitar mais e mais de sair de casa, conversar com os amigos, sair, ver gente, abraçar, ter contato.

Antes do início dessa semana e do acirramento do pedido das autoridades para que nos mantivéssemos seguros e em casa, quietos e protegidos, que pensássemos em coisas para fazer no isolamento doméstico que nos ajudasse a produzirmos, passarmos o tempo, nos protegermos e aos nossos ‘irmãos’ do grupo de risco, nós raramente fazíamos compras com dois carrinhos de coisas no mercado. Muita gente raramente comprava estoque de papel higiênico, estoque de água mineral, estoque de ervilha em lata, estoque de leite condensado, estoque de shampoo ou de escova de dente e hoje vemos, atônitos, tais cenas nos supermercados. Entramos em filas enormes e deparamo-nos com pessoas com dois ou três carrinhos de compras, quase que agarradas a ele, numa total posição de defesa e de ataque. É como se a qualquer momento alguém fosse lutar conosco pelos mantimentos que estamos tentando comprar e que estes fossem fazer tanta falta a ponto de nos colocar em grave risco. Pessoas protegendo bravamente seu papel higiênico comprado de fardo e sua ervilha comprada de caixa fechada.

O álcool gel e máscaras de proteção viraram objetos de brigas, discussões, bate boca e, se não houver intervenção, de tapas e socos. Creio que todos percebemos que estes produtos se esgotaram nas prateleiras de farmácias, lojas, mercados e demais fornecedores, creio também que todos recebemos os vídeos de pessoas brigando, batendo boca, discutindo e quase se batendo por causa do álcool. Pessoas comprando de caixa fechada de álcool, fardos de máscaras, fazendo um estoque surreal, quase maior que de um hospital de referência. Queremos um mundo melhor, mas se eu tiver de pensar no outro, quero mais é que o outro é que lute, como dizem os jovens. De onde saiu esse nosso senso raso de empatia, de cuidado com o outro e de coerência com o que sempre pregamos?

Nesta semana minha filha andando pelo corredor do supermercado, indo em direção à geladeira buscar um chá gelado, passou pelo álcool de acender churrasqueira e este era o último frasco, pois bem, ela foi arrancada e empurrada por uma senhora super idônea e preocupada com seus familiares, para que não conseguisse se aproximar do álcool (que não compraria, como disse, estava andando no corredor). Uma adolescente foi retirada a força de onde estava caminhando por uma adulta por causa de um frasco de álcool para churrasqueira? Onde está o respeito que tanto queremos e que fazemos questão de exigir? Como ela se sentiria se fosse eu a fazer o que ela fez com minha filha com um filho dela? Enfim, que bom que ela comprou o álcool e deve estar mais calma agora.

Ontem recebi e-mails e fotos de WhatsApp com avisos de supermercados dizendo que visando o abastecimento de todos teriam de limitar a quantidade de produto por cliente, para que nenhum fique sem o que precisa até que o supermercado seja reabastecido. Meu Deus, pensei! Falamos tanto em solidariedade e empatia, mas precisamos que o supermercado nos diga que um carrinho lotado de fardo de papel higiênico é desnecessário e que então tempos a quantidade determinada do produto para podermos comprar!!!

Em tempos de isolamento, em tempos de pandemia, nos conectarmos com o outro é preciso. É preciso deixarmos álcool em gel para que o outro se previna, máscaras para que o outro consiga estar seguro, é preciso deixarmos mantimentos para que outras famílias possam fazer sua higiene pessoal, suas refeições e limparem suas casas. Sim, TODOS precisamos estar seguros e saudáveis para contermos o alastramento do vírus. É preciso que possamos pensar nos demais para que possamos permanecer humanos e humanos que lembram do outro com afeto, preocupação e carinho, como esperam receber dos demais.

Não estamos em férias, então estarmos em casa é medida de segurança, é correto e é adequado e merece até aquela foto em rede social, com o título: #isolamento! Em tempos de medo e de ansiedade, a solidariedade nos aproxima dos demais e nos aquece a alma. Em tempos de más notícias lermos: “Prezados vizinhos idosos, portadores de doenças raras e / ou que não estão saindo para se prevenir, se precisarem que eu vá à farmácia, supermercado ou buscar algo para vocês, estou à disposição, sou _____ do apto ou casa ____” é algo que nos faz crer que o mundo ainda tem jeito e a humanidade tem salvação.

Que todos possamos passar por esse período difícil e sair dele saudáveis, bem e especialmente tocados pelo amor, empatia, cuidado e solidariedade.

Encerro com um convite a reflexão a partir de um pequeno texto do Padre Fábio de Melo: “É muito bonito descobrirmos que, na oportunidade de encontrar o outro, também encontramos um pouquinho daquilo que somos. Há duas formas da fazermos isso: nos alegrando quando vemos, refletido no outro, um pouco daquilo que temos de bom. Mas também podemos nos entristecer, quando vemos o que o outro tem de ruim e descobrimos que somos ruins também daquele jeito. Por isso é natural que, muitas vezes, aquilo que eu escuto de ruim do outro eu acabo não gostando, porque, na verdade, ele me mostra o que eu sou. Ter a pureza no olhar significa você se despir de tudo e começar a olhar com carinho e liberdade para aquilo que o outro é, permitindo que esse seja o encontro frutuoso, tanto para nos mostrar o que temos de bom e para nos indicar no que precisamos ser melhor.”

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