Bebedouro, o novo CD de Zé Renato, cheira a maresia. Soa como “água de mina da mata”, como ele canta em Fonte de rei, faixa que abre o disco, parceria sua com Paulo César Pinheiro. Remete tanto às águas paradas da Lagoa Rodrigo de Freitas, mencionadas em Sacopenapan, de Zé e Joyce Moreno, quanto ao mar alto que traz as “mágoas atlânticas” e “tristezas abissais” dos versos de Náufrago, esta letrada por Nei Lopes.
Produzido pelo saxofonista Zé Nogueira e pontuado pelo piano de Cristóvão Bastos, o trabalho – o primeiro com composições inéditas em sete anos de viagens paralelas, com o Boca Livre e outras companhias de aventuras musicais – traz ainda encontros com João Cavalcanti (ex-Casuarina), autor da amorosa Samba e Nada Mais; Dori Caymmi, que empresta o vozeirão a ela; Capinam, letrista da doce Agora e Sempre; Moraes Moreira, com quem fez a descompromissada Vamos curtir o amor; e Moacyr Luz, da Carioquíssima Agogô, impregnada do tal suingue nativo e da liberdade que o samba dá, e a mais urbana do CD.
Aos 41 anos de carreira, (61 de nascimento), Zé Renato define: faz “música sincera”. Segue exercitando o ofício de compositor, embora seja mais visto como intérprete, por conta de projetos bem-sucedidos em que cantou Zé Keti (Natural do Rio de Janeiro, de 1995), Silvio Caldas (discos de 1993 e 1998), por ocasião dos 90 anos do “caboclinho querido” e Noel Rosa e Chico Buarque (Filosofia, de 2001).
“Faço do único jeito que sei fazer: por prazer, para mim mesmo, torcendo para que as pessoas gostem. Adoraria que as pessoas saíssem cantando o Bebedouro por aí, só que sei que é uma certa utopia”, brinca Zé, acompanhado no CD por Guto Wirtti (baixo), Kiko Freitas (bateria), Thiago da Serrinha (percussão), Bebe Kramer (acordeom), Luciana Rabello (cavaquinho), Dadi (baixo), entre outros grandes.
“Eu queria que o violão não fosse ofuscado, que viesse primeiro, mesmo que meu violão seja limitado. O Cristóvão foi perfeito para isso, com seu piano econômico, deixando as coisas acontecerem”, ele explica.
Os afetos que desaguaram em Bebedouro têm origens distintas. Zé já conhecia Moraes Moreira, mas eles nunca haviam composto juntos. Certa vez, encontraram-se num aeroporto, entre shows, e trocaram telefones, com a promessa de um dia fazerem algo juntos Mal entrou no avião, o baiano já havia mandado a letra do que viria a ser Vamos Curtir o Amor. “O amor é sim, explosivo/ Diferente da amizade/ Inunda se for preciso/ É feito um rio que invade/ Afoga tudo que é queixa/ Quando se vai ele deixa/ A sombra de uma saudade…”
Zé não fez por menos: chegou em casa e criou a música, fazendo-a chegar de volta ao novo parceiro. Quando viu a composição pronta, percebeu o parentesco da composição com o repertório solar dos Novos Baianos.
Em João Cavalcanti ele enxerga um expoente de uma safra de cantautores que admira, assim como Moyseis Marques, com quem também já firmou parceria. São eles que o cantor cita quando lhe perguntam sobre artistas de uma geração mais nova que lhe chamam a atenção. Com Nei Lopes Zé já trabalhara em sambas de Cabô, disco de 1999. Tendo o barulho de ondas do mar de fundo, Náufrago é impressionista – “Rastros na areia desenhando imprecisões/ Vagas ideias, vendavais, embarcações/ Por sedimentos, fragmentos de vulcões/ Longe horizonte se desfaz ameaçador/ Em clarões, trovões, pavor” – e lírica – “Eu que sempre amante/ Jamais soube amar/ Na maré vazante/ Me afoguei no mar/ Eu que nunca dantes/ Fui navegador/ Fiz-me naufragante/ Pra morrer de amor”.
PC Pinheiro lhe entregou letras datilografadas num envelope, para que escolhesse as que quisesse. As imagens que mais o cativaram foram as descritas em Fonte de Rei (“água de prata”, “areia de ouro”, “poesia pra canto de passarinho”) e em Pedra do Mar (a pedra que o mar joga na calçada, que cega o olhar e clareia a estrada, o “talismã de esperança”). Os dois têm “umas 20” músicas juntos. “Dava para fazer outro disco só com o que já fiz com Paulinho, com Joyce (que entrou também com ‘Noite’) e com Pedro Luis (parceiro em ‘Cabô’)”, acredita.
Foi sorvendo Fonte de Rei que o cantor chegou ao espírito do CD. Sua memória musical afetiva o levou a Limite das Águas, LP de Edu Lobo de 1976 – o ano em que começou sua navegação pela música -, a Milton Nascimento, a Egberto Gismonti. “O ouvinte atento percebe essas referências expostas”, aponta.
Moacyr Luz é seu companheiro de Dobrando a Carioca, com Guinga e Jards Macalé. O quarteto lançou CD e DVD em 2016, de clássicos de épocas distintas, como Vapor Barato (Waly Salomão/Macalé), Catavento e Girassol (Guinga/ Aldir Blanc) e Acertei no Milhar (Wilson Batista/Geraldo Pereira).
De forma que considera “anárquica”, Zé divide entre o grupo, o trabalho solo e o Boca Livre, o conjunto vocal que o projetou, e que faz 40 anos neste 2018 – um CD deve marcar a data, com inéditas, além de shows, estes naturalmente recheados de sucessos que marcam essa trajetória.
Ao olhar para o passado e encarar o presente, Zé Renato diz, delicadamente, que percebe um certo “desapego” da preocupação com a riqueza melódica e harmônica no cenário musical atual. “Sem querer ser nostálgico e não desfazendo de nada do que ouvimos hoje em dia – não vou dizer se é melhor ou não, de maior ou pior qualidade -, o que me conectou e me conecta à música são justamente as melodias e as harmonias, mais do que as letras. A sinuosidade de um Elton Medeiros, Tom Jobim, Milton… A riqueza de caminhos é o que me comove. Hoje temos um distanciamento disso. O público se desacostumou. Sou old fashioned”, ri o cantor, que, jovenzinho, só se via como compositor.
“Quando comecei, o canto não era o principal, não via como um objetivo. Tanto que as referências para mim eram compositores que cantam, como Chico e Milton. Eram eles que eu queria ser.”