Dirigido pelo finlandês Dome Karukoski, Tolkien, que estreia nos cinemas brasileiros na próxima quinta-feira, 23, não chega a ser uma cinebiografia do autor de O Senhor dos Anéis. O filme, na verdade, se propõe a especular sobre como um simples filólogo e professor, que levou uma vida majoritariamente pacata, pôde escrever uma das mais épicas sagas da literatura universal. Talvez por isso o roteiro assinado por David Gleeson e Stephen Beresford limita-se aos anos de formação do escritor, interpretado por Nicholas Hoult, especialmente entre 1900 e 1916
Em busca das raízes da Terra-média, o filme ignora a maior parte da vida do biografado, como os anos da infância no vilarejo de Sarehole – possível inspiração do condado dos hobbits -, tidos por ele como “os mais longos da minha vida” e “mais importantes na minha formação”; e seus anos de docência em Oxford, quando escreveu e publicou suas principais obras.
De origem britânica, John Reuel Ronald Tolkien (1892-1973) nasceu na África do Sul, mas perdeu o pai, Arthur, ainda na infância e passou a viver na Inglaterra com a mãe, Mabel, que também morreria logo. Após algum tempo morando com uma tia, ele e seu irmão, Hilary, foram acolhidos na casa da sra. Faulkner, onde se estabeleceram até a idade adulta. Lá, Ronald conheceria outra órfã, Edith Bratt, com quem viria a se casar, mas não antes de partir para Oxford a fim de estudar filologia -, e para a França, convocado para a 1ª Guerra Mundial.
A participação de Tolkien no conflito, bastante romantizada no filme, não foi tão direta. Ele era um sinalizador, encarregado das comunicações de seu batalhão. Chegou a participar de uma ofensiva fracassada em meados de julho de 1916, quando passou 48 horas sem dormir, mas não sofreu ferimentos e retornou à Inglaterra ao ser acometido pela “febre das trincheiras”. A guerra, no entanto, levou dois de seus melhores amigos, com quem Tolkien mantinha uma espécie de sociedade literária desde a adolescência, perda que o marcou profundamente.
Por meio de sobreposições imagéticas, o filme se esforça para construir paralelos entre vida e obra do escritor. Mabel lia romances de cavalaria para os filhos. Na guerra, Ronald enxerga uma entidade semelhante a Sauron, vilão de O Senhor dos Anéis, em meio ao campo de batalha do Rio Somme, em uma cena de tom onírico. Quando soldados alemães atacam as trincheiras aliadas com lança-chamas, o rapaz vê o dragão Smaug, de O Hobbit, expelindo fogo. Em dado momento, ele leva Edith para assistir à ópera de Richard Wagner O Anel dos Nibelungos, relação que, para o próprio Tolkien, era equivocada – tanto que ele chegou a afirmar que “ambos os anéis eram redondos, e é aí que a semelhança termina”. Em outra cena, Edith dança sob uma árvore, em uma clara alusão à descrição de uma cena do conto Beren e Lúthien, em que um mortal se apaixona por uma elfa – nas lápides de Tolkien e Edith estão inscritos os nomes desses personagens.
Edith, aliás, se mostra um dos maiores acertos do longa. Diferentemente do retrato dócil pintado pelo biógrafo Humphrey Carpenter, a personagem vivida por Lily Collins encarna o desejo de liberdade de uma garota confinada desde a mais tenra infância, com aspirações intelectuais e artísticas que, como sugere o filme, teriam sido desencorajadas pelo próprio Tolkien, que nunca a estimulou a seguir carreira com a música erudita que tanto admirava – embora dissesse a todos que ela tocava piano lindamente.
Embora o longa tente a todo momento indicar implicitamente a gênese do universo de Tolkien por meio do registro de sua juventude, o autor de O Silmarillion dificilmente aprovaria esse expediente. “Uma das minhas opiniões mais veementes”, escreveu Tolkien, “é de que a investigação da biografia de um autor é uma abordagem inteiramente vã e falsa de suas obras”. Talvez por isso seja tão difícil retratar em um filme, que depende de ação e elementos visuais, a rotina modesta de um acadêmico como Tolkien, cuja vida foi quase uma antítese de sua obra.