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Cássia Kis leva versos de Manoel de Barros para ‘Meu quintal é o maior do mundo’

Foi em 1990, quando gravava a novela Pantanal no interior de Mato Grosso, que a atriz Cássia Kis teve um deslumbramento ao descobrir a força da poesia de Manoel de Barros (1916-2014) – a aparente simplicidade daqueles versos, que até pareciam infantis, mas que, na verdade, encobriam uma erudição e uma engenhosa recriação das palavras, deixou-a perplexa. “Naquele momento, decidi que faria um espetáculo baseado em sua obra”, conta hoje Cássia que, depois de um longo (e necessário) tempo de maturação, estreia a peça Meu Quintal É Maior do Que o Mundo, na quinta-feira, 31, no Teatro do Sesi-SP.

Trata-se de um espetáculo com a delicadeza de um teatro de câmara, mas que provoca uma explosão de sentimentos no espectador. “É um trabalho para atiçar a imaginação da plateia”, acredita o encenador Ulysses Cruz, responsável pela direção da peça. Ao lado de Cássia, ele trabalhou detalhadamente nos 18 poemas/textos que são apresentados pela atriz. Era necessário manter a precisão das palavras criadas pelo poeta ao mesmo tempo em que se buscava seu colorido e sua sonoridade. “Manoel até podia ter uma alma triste, mas jamais abandonou a criança que vivia dentro dele e que estimulava sua criação”, observa Cruz.

De fato, Manoel de Barros construiu uma obra poética na qual a linguagem era artesanalmente construída, mas sem se ater a convenções gramaticais ou sociais – encontrar a simplicidade era sua meta. “Eu tenho pela palavra a mesma fascinação que a lesma tem pelas pedras. E que os lagartos têm pela solidão das pedras”, disse ele, certa vez, em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo. “A gente precisa se vigiar ao escrever. Não podemos, ao escrever, abandonar o canto, a harmonia letral. Não podemos desprezar os gorjeios das palavras.”

“Faz mais de 30 anos que venho buscando entender a poesia dele e, mesmo assim, sempre é tempo para novas descobertas”, comenta Cássia, que conheceu Manoel pessoalmente, cultivando por dez anos uma amizade mantida também por cartas. É desse entendimento ainda em processo que a atriz montou o espetáculo. “A peça é literatura, pois pede que o espectador ouça frases bem construídas, a forma como ele dizia essas palavras, as dores que estavam ali escondidas. Manoel era como um andarilho que inventava caminhos.”

Para um projeto de vida como esse, era preciso cuidar de todos os detalhes a fim de permitir a imersão do público em uma poesia tão viva. O ponto de partida da montagem que estreia agora foi um dos livros mais celebrados de Manoel de Barros, Memórias Inventadas – Cruz percebeu que ali todos os textos continham um enredo. “Percebi logo que não era possível trazer a obra toda para o palco, pela quantidade de textos e também pelo risco da fragmentação em pequenas histórias, que geraria dificuldade de compreensão. Escolhemos, então, os textos poéticos mais significativos.”

E ainda aqueles que melhor traduzissem o universo manoelino. Afinal, ele mesmo reconhecia a necessidade de escrever. “Meu mundo sou eu em carne e letras. Sou o que produzo e o que não consigo produzir. Sofro um pouco nessa parte de não poder produzir”, disse ele em outra das várias conversas que manteve com o Estado, algumas realizadas por fax, em que sua letra miúda trazia universos infinitos, em uma linguagem absolutamente original e simples, reforçando que o simples é o oposto do fácil

Com os textos em mãos, o diretor percebeu que a encenação poderia seguir a estrutura de um livro que utilizava quando ensinava técnicas cênicas: Improvisação para o Teatro, de Viola Spolin. A partir dos três conceitos contidos na obra – onde se passa a ação, quem está na ação e o que se está fazendo -, Cruz organizou os 18 textos. O trabalho incluiu a necessidade de unir um fragmento ao outro para ampliar a ideia de continuidade. “Afinal, cada texto, todos curtos, encerra em si o mundo.”

“O bloco ‘onde’ reúne textos com descrições dos cenários que Manoel faz de seu mundo. O segundo bloco, ‘quem’, traz os textos que mostram quem é aquela pessoa que descreve aqueles cenários. Finalmente, os textos de ‘o que’ trazem os objetos de inspiração do poeta”, explica o encenador. “A peça tem em sua estrutura uma abertura, na qual o público entende quais são as fontes do poeta e que mostra a chegada ao quintal, simbolizada por um tapete. Em seguida, é apresentada aquela pessoa que descreve aqueles cenários.”

Estruturados dessa forma, os textos descrevem o Manoel menino, homem e já velho. “Em todas as etapas, vemos uma pessoa atenta a movimentos que passam despercebidos para a maioria das pessoas, como uma fila indiana de formigas”, comenta Cássia. “Ele tinha um especial apreço pelos seres que andavam com a barriga próxima ao chão.”

Para o completo entendimento desse ciclo de vida, Nicolas Caratori, jovem que estreia como designer de luz, criou uma iluminação que acompanha a trajetória do poeta como um dia, do alvorecer ao anoitecer. “Também a iluminação do Pantanal, onde Manoel viveu, me inspirou”, conta ele.

Em cena, Cássia é acompanhada do músico Gilberto Rodrigues que, no seu vibrafone, traduz a sonoridade dos poemas ditos pela atriz, criando uma nova trilha sonora a cada apresentação. E Cássia ainda vai conversar com o público durante 20 minutos, depois da peça.

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